Jornal A Página, ano 17, nº 177, Abril de 2008, pág.16
O conflito inequívoco que se estabeleceu entre educadores e professores e o Ministério da Educação, a propósito da avaliação de desempenho dos primeiros, é a prova que nos defrontamos com uma acção política que é contrária à construção de uma Escola Pública comprometida com os valores de uma sociedade democrática. Uma escola que, para existir, necessita de garantir a igualdade do acesso e do sucesso às crianças e aos jovens que a frequentam, o que a obriga a repensar a sua organização e as práticas educativas que aí têm lugar. Uma escola cujo corpo docente terá que aprender a explicitar compromissos, a reflectir de forma proactiva sobre os desafios e as exigências com que se confrontam e a trabalhar, de forma reflectida, em equipa para concretizar os projectos que concebe, monitoriza e implementa de forma colegial. Não é um objectivo que se encontre à mão de semear. É mais um propósito cujo horizonte se vislumbra, ainda que estejamos bastante distantes do mesmo. Não sendo este um problema exclusivamente português, é, todavia, um problema que, em Portugal, assume uma importância singular, tendo em conta quer as vicissitudes da história do nosso sistema educativo, quer as assimetrias sociais e culturais que atravessam a nossa sociedade. No seu conjunto, tanto essas vicissitudes, como essas assimetrias, conduziram-nos para situações que urge superar, tais como o abandono escolar, o insucesso, o falso sucesso ou a falta de significado de muito do trabalho que acontece, hoje, em muitas das nossas escolas. Há problemas que, enquanto professores, poderemos resolver, há outros a que teremos que conferir visibilidade, outros há, ainda, que poderão ser minimizados e, finalmente, há aqueles problemas que não tendo solução, se pensados como compromissos, apenas, dos professores e das escolas, terão que ser objecto de uma abordagem distinta e, sobretudo, mais ampla. Que tipos de problemas são esses? Não poderemos responder a esta questão. Nem nós nem ninguém que seja estranho a cada uma das escolas deste país. Por isso é que nestas escolas seria necessário investir no desenvolvimento de uma cultura da avaliação, já que só assim seria possível encontrar uma resposta àquela questão que fosse construída em parceria e de forma contextualizada. Não é este, contudo, o objectivo que norteia a proposta da actual equipa ministerial. Para esta equipa, a função da avaliação de desempenho visa, apenas e somente, hierarquizar os professores e estabelecer a corte dos excelentes, circunscrevendo, assim, esta avaliação ao papel de instrumento de gestão de carreiras num tempo caracterizado pelo desinvestimento em políticas proactivas de natureza social e em instituições de carácter público. Trata-se de uma opção que merece, num primeiro momento, uma leitura política panorâmica, já que expressa a subordinação da acção de um governo conotado com a esquerda parlamentar à cartilha da gestão empresarial no domínio da educação e, num segundo momento, uma leitura mais circunscrita, na medida em que as decisões do Ministério da Educação têm que ser lidas como decisões canhestras que são fruto de um estilo de governação tão messiânico quanto crispado. Em suma, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues e a sua equipa pecam, sobretudo, porque não acreditam nas potencialidades da democracia e dos seus valores como referências das propostas políticas que produzem. Para esta equipa e a sua líder só se acredita que as escolas possam funcionar de forma adequada se os professores forem geridos quer através de prémios, quer através de pauladas. Trata-se de uma perspectiva que conflitua com a reserva de esperança que caldeia a crença nas possibilidades de uma sociedade ser gerida de forma democrática, o que, de algum modo, contribui para vulnerabilizar a própria democracia como modo de organização política. Sabendo nós que essa esperança é necessária, mas não é suficiente para que as democracias existam e as modalidades e os estilos de vida que as mesmas inspiram se consolidem, isso não significa que possamos abdicar dos seus princípios e dos seus valores para agir em nome da necessidade de consolidar essas mesmas democracias. Não chega, por isso, ao Ministério da Educação proclamar a legitimidade do seu mandato político em nome do voto popular. Este, e qualquer outro ministério, só serão capazes de respeitar um tal mandato se forem capazes de tomarem decisões capazes de potenciarem o humano que existe em cada um de nós. É neste sentido que o programa de avaliação de desempenho não é um projecto democrático. Descrê desse humano e não investe na possibilidade da sua afirmação. É, também, um projecto incompetente, porque anuncia uma possibilidade de avaliação que não é viável e que, para além disso, é eticamente desonesta. É que, a haver avaliação de desempenho, esta só poderá ser consequência, a prazo, de um projecto de avaliação que vise, nesta fase, contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de avaliação nas nossas escolas. Uma cultura de avaliação que passa pelo apoio e monitorização à assunção de compromissos educativos, curriculares e pedagógicos que constituam referências daquele projecto. Infelizmente não foi esse o papel que esta ministra e este ministério quiseram assumir. A sua arrogância e autoritarismo impediram-nos, nomeadamente, de mostrar como a sua iniciativa poderia ter sido defendida como uma iniciativa útil, no momento em que, baseados nos testemunhos dos professores e das escolas, evidenciassem como a sua acção teria conduzido as escolas a tomarem consciência da necessidade de serem geridas em função de uma rota e de um rumo. Num ministério tão dado à auto--publicitação das iniciativas que promove, importa perguntar porque é que nunca o fizeram? Na nossa opinião, a resposta não é muito difícil de encontrar. É que um ministério que se encontra refém de uma política educativa marcada pelo economicismo, parece-nos ser um ministério que está pouco interessado numa escola mais humana, inteligente e democrática. O que lhe interessa não é a educação, mas a redução de custos, mesmo que tal redução possa penalizar a possibilidade das nossas escolas poderem vir a ser melhores escolas. A avaliação de desempenho, neste sentido, pouco tem a ver como uma iniciativa que visa promover a melhoria da qualidade educativa nas escolas. A finalidade da mesma terá que ser entendida, então e infelizmente, à luz do desinvestimento nos professores como actores decisivos na promoção de uma tal melhoria.
Ariana Cosme & Rui Trindade, FPCE, Universidade do Porto